Deputados angolanos saudaram hoje a decisão do Tribunal Constitucional (TC) que considerou “inconstitucionais” normas da lei sobre identificação celular, que atribui competências ao Ministério Público (MP) para validar escutas telefónicas, considerando que a medida sinaliza “independência dos poderes”. É, ou poderá ser, o país a aprender a ser um Estado de Direito.
“Relativamente às escutas aprovadas pelo MP e que agora foram chumbadas pelo Tribunal Constitucional, entendemos que, de facto, a Constituição tinha sido violada naquilo que está consagrado no seu artigo 34.º sobre a inviolabilidade da correspondência e das comunicações”, afirmou a deputada Mihaela Webba.
A deputada da UNITA, na oposição, recorda que a Constituição angolana estabelece que a ”validação de violação de correspondência e das comunicações apenas pode der feita por autoridade judicial competente”.
O TC “entendeu que esta autoridade judicial não deve ser o MP, mas sim um juiz de garantia”, disse, acrescentando: “Concordamos com isso. Achamos que tudo o que seja afronta aos direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos deve ser efectivamente na sua restrição para efeitos de procedimentos processuais penais”, disse.
“Deve ser efectivamente um juiz de garantia para que os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos não sejam colocados em causa”, realçou a deputada.
O TC angolano considerou inconstitucionais as normas da lei sobre identificação ou localização celular e vigilância electrónica que atribui competências ao MP para ordenar, autorizar e validar escutas telefónicas e gravação em ambiente privado.
No acórdão nº658/20, de 15 de Dezembro, tornado público em finais de Dezembro (tal como o Folha 8 escreveu num outro texto obre o mesmo assunto e hoje publicado), o plenário de juízes do TC dá provimento à acção intentada pela Ordem dos Advogados de Angola (OAA), referindo que tal competência é de um juiz de garantia e não do MP.
A lei sobre identificação ou localização celular e vigilância electrónica foi aprovada em Abril de 2020 pelo Parlamento e na sequência a OAA deu entrada de um processo no TC sobre fiscalização sucessiva e abstracta da constitucionalidade das normas desse diploma.
Segundo a deputada da UNITA, em Angola são utilizadas escutas telefónicas “à margem da lei, sobretudo a pessoas com interesses políticos e económicos”, afirmando que existe no país uma sensação de que todos “vivemos sob escutas ilegais e inadmissíveis num Estado que se diz de direito”.
“E, portanto, acho que esta decisão do TC deveria fazer reflectir, sobretudo os Serviços de Segurança e de Inteligência de Angola que quando deveriam trabalhar não o fizerem e deixaram que o dinheiro do país saísse da forma como saiu e que ficássemos na crise em que estamos”, notou.
“Portanto, as instituições devem funcionar para benefício do Estado e dos cidadãos angolanos e não, propriamente, para interesses político-partidário que é o que acontecia na questão das escutas telefónicas”, rematou Mihaela Webba, também jurista e docente universitária.
A lei sobre identificação ou localização celular e vigilância electrónica, ao atribuir ao Ministério Público efectivos e reais poderes jurisdicionais, “contraria os preceitos estabelecidos pelo legislador constitucional”, refere o TC.
Por seu lado, o deputado do MPLA (no poder há 45 anos) João Pinto, considerou que o processo de fiscalização abstracta e sucessiva sobre a constitucionalidade da referida lei intentado pela OAA “mostra que as instituições republicanas consagradas na Constituição estão a exercer as suas competências, o que é bom”.
O político do MPLA recorda que a as normas que permitem ao MP autorizar a prática de actos que por força da Constituição cabe a um juiz de garantia “são transitórias, porque esta figura ainda não está institucionalizada”.
Não estando institucionalizado (o juiz de garantia) “esta norma deve ser vista como transitória, porque o que é de direito não pode ser impedido de realizar as suas funções por resultado de omissões que podem ser supridas e neste caso até 2010 esta instituição não existia”.
“E devemos reconhecer também que de 1992 a 1997 não tínhamos o Provedor de Justiça, era o MP que exercia este poder, ou seja, a transição democrática constitucional também tem fases graduais da implementação da própria Constituição e até agora ainda não foi implementado o juiz de garantia”, explicou.
“Sendo uma inconstitucionalidade, em bom rigor trata-se de uma situação que tem sido praticada até agora pelo MP e até à implementação do juiz de garantia, claro que estamos diante de uma situação que deve se seguir o que diz a Constituição”, frisou.
João Pinto disse ainda que o posicionamento do TC demonstra que “os argumentos que muitos utilizavam de inexistência de garantias na Constituição, de inexistência de limites e haver excessiva concentração de poder são falaciosos”.
“Porque cada vez mais o TC exerce as suas competências, os actores que podem fiscalizar o exercício da actividade legislativa, o Presidente da República tem exercido, o TC tem exercido, não há poderes absolutos, há poderes próprios e partilhados”, rematou.
Na prática, o juiz de Garantia actuará, por regra, somente na investigação criminal. Dessa forma, os processos penais poderão passar a ter um acompanhamento por dois juízes. O de Garantia vocacionado para comandar a investigação e um outro para determinar os eventuais julgamentos.
O resultado será uma selecção das funções jurisdicionais, na investigação e no julgamento. Faz parte do dever do Juiz de Garantia, por exemplo, decidir sobre prisão provisória, assuntos como os que envolvem impostos, bancos, dados telefónicos, e também sobre fases de busca e apreensão.
Quarenta e quatro anos depois da proclamação da Independência, Angola passou a contar com um Código de Processo Penal de “inspiração” angolana. Terminava a era do Código elaborado pelo regime português, em 1929, abrindo espaço para abordagens penais mais ajustadas às realidades do país.
Aprovado pelo Parlamento, depois de 13 meses de debates, o Código de Processo Penal marcou um importante passo no processo de reforma da justiça e do direito em Angola.
Com 604 artigos, o Código de Processo Penal contempla, entre outras novidades, o surgimento do juiz de garantia, para melhor averiguar os processos após a instrução preparatória, aferindo se os mesmos devem ir a julgamento ou ser arquivados.
Diante do novo contexto, o Ministério Público terá um prazo limite para a conclusão dos processos de instrução, antes de enviar aos juízes de garantia. Caberá, ao juiz de garantia, a missão de avaliar a conformidade dos processos instaurados, ou seja, se contendem ou não com a Lei.
Folha 8 com Lusa e Angop